quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE

1845
23 de Janeiro
REVISTA UNIVERSAL LISBONENSE
 
Tomo IV
ANNO DE
1844-1845
Nº 27
Pag. 329, 330
 
Lisboa
Imprensa da gazeta dos tribunaes
Ru dos Fanqueiros nº. 32
1845
 
 












LUZ PINTORA
3842 – SABE,  com certeza, que é n’esta casa?
-         Com toda a certeza, rua nova dos Martyres, n.º 34, 1.º andar, Mr Thiesson !
-         Mas estas seges á porta !...
-         Mr. Thiesson de Pariz: não tem duvida nenhuma.
-         Pintor.
-         Não.
-         Pintor de retratos ...
-         Também não: Mr. Thiesson, retratista.
-         Não percebo a diferença.
-         Em casa de Mr. Thiesson nã se vê nem pincel, nem palheta, nem lapis, nem sequer uma penna n’um tinteiro ao pé d’uma folha de papel.
-         Até ahi não há nada de extraordinario, mas parecia-me ter percebido que elle se ocupava em tirar retratos, por signal a 4$800 rs.; e era para isso...Em seis retratos meos que tenho mandado fazer por diversos artistas, para dar á minha noiva, ns em miniatura, outros em claro escuro, outros a oleo, tenho sido até hoje tão feliz, que se ella tivesse a indiscrição de os mostrar, daria a mais horrorosa idéa da sua constancia; julgal-a hiam namorada de seis pessoas differentes, inclusivamente de meu avô, e d’outro individuo, que poderá vir a ser meu neto ainda antes de eu ser caduco. A arte a meu respeito já tinha desanimado: proclamou-me inconquistavel; um verdadeiro Gibraltar da especie humana em relação a ela ! Diseram-me então que Mr. Thiesson copiava tudo, com a fidelidadede um espelho .
-         Exactamente.
-         Mas pareceu-me ouvir ao meu amigo que ele não tinha instrumentos.
-         Nem os necessita: as mãos sãoquasi inteiramente superfluas a mr. Thiesson.
-         Visto isso é por encantamento que elle trabalha; é com a palavra que ele traslada as nossas feições !
-         Tal qual: apresenta-se-lhe a pessoa que deseja ver-se, não retratada, mas duplicada. O jovem ... artista, visto que é necesário chamarmos-lhe alguma coisa, olha apenas para ela, mandando-a sentar, e assim como Deusdise: faça-se a luz, diz ele á luz: faça-se o retrato, e o retrato é feito ! Subamos.
-         Uma palavra primeiro; tudo o que o meu amigo me acaba de dizer, a respeito de Mr. Thiesson, e que poderiafigurar muito decentemente n’um conto persico, para adormecer ao governador dos orentes Hareun Alraschid,  póde vir a ter consequencias pouco agradaveis. Eu bem sei que já estamos nas raias do carnaval; mas o meu amigo sabe tambem que eu não sou dos que se deixam escarnecer impunemente, assim uma única palavra emquanto é tempo. Mora aqui Mr. Thiesson, retratista, e capaz de me retratar, note isto bem; capaz de me retratar ... a mim?
-         Tão capaz, que há-de ser V. S.ª um dos poucos que posam gabar-se de ter cumprido o preceito do sabio da Grecia: há-de-se conhecer a si mesmo.
-         Muito bem, subamos.
-         Pouco depois estavam os dois interlocutores n’uma vasta sala de esquina, com frente rasgada toda em janelas, que não formavam mais do que uma, e deitando para um belo jardim. O principal ornamento d’esta sala bastou para estremecer até aos alicerces a incredulidade do homem dos seis retratos. Via uma quantidade prodigiosa d’eles a vestir as paredes, com tantisimo primor acabados - tão perfeitos os que eram de pessoas suas conhecidas - que a sua triste presumpção de inconquistavel, imediatamente areou bandeira.
-         O meu companheiro triumphava surrindo.
-         Quem derá aquela bele figura? – perguntou ele como que a si mesmo – viva simpathica, exprimindo a probidade e o talento?
-         Bartholomeu dos Martyres ! imposivel não recohecer no primeiro relance
-         E este nobre aspecto militar?
-         O Ferreri.
-         Este aqui não há duvida, é Agostinho Albano.
-         Ele mesmo, e vivo; parece-me estal-o ouvindo n’um daqueles seus improvisos no parlamento, admiraveis de sciencia e profundidade.
-         N’este momento entrou Mr. Thiesson, mancebo elegante, alto, phisionomia agradavel, olhos brilhantes, maneiras de homem costumado a boa sociedade.
-         Meus senhores – dise elle no mais puro parisience – o que estaes vendo são apenas alguns retratos de que os seus originaes não pareceram ficar satisfeitos, e que por isso foi necesario tirar segunda vez: os approvados partiram; estes são apenas os refugos: mas permiti-me que vos mostre algumas outras curiosidades do mesmo genero, um tanto mais notaveis pela sua pequenez. Incaminhou-os para uma jardineira colocada no eio da sala, sobre a qual dentro de uma caixa coberta de vidraça se viam alguns retratinhos de cavalheiros e damas  de tão microscopicas dimenssões, que n’um alfinete de peito, porexemplo, se inxergavam duas meninas conversando.
O incredulo não podia acreditar nos seus olhos, parecia até applicar o ouvido para as escutar, e surria como que percebendo as suas palavras que manifestamente, com taes rostos, e tal expresão, não podiam deixar de ser segredos, segredos do coração d’aqueles que não admitem terceiro.
Ainda porém não era tudo. Um microscopio, que Mr. Thiesson lhe meteu os olhos n’este momento, um microscopio, o eterno escarnecedor das mais perfeitas obras da arte, lhe patenteou uma perfeição tão minuciosa, e tão completa em todas as partes, e sobre tudo um relevo de formas, um palpavel elastico de carnes, um morbido e fino de cabellos, um raiar de olhos vivo e fallador, que se diria que alguma fada invejosa das duas formusuras as encantára, para ficarem para sempre imoveis, reduzidas áquele carceresinho de oiro, de uma polegada.
-         Muito bem, senhor, o que eu acabo de ver excede tudo quanto havia lido e ouvido da vosa arte milagrosa. Quereis vós  ter a bondade de fazer o meu septimo e ultimo retrato?
-         Com o maior gôsto; desçamos ao meu jardim e a luz vos vae servir dentro em poucos segundos.
Por diante de uma cortina branca, estendida sobreuma das paredes do jardim, ve se uma cadeira ao lado de uma mesa; a mesa está coberta de um pano pintado de ramalhões, a cadeira tem no alto da espalda uma hastea terminando n’um circulo para encosto da parte posterior da cabeça, e podendo, por via de um registo, subir ou descer para se egualar á altura da pesoa.
-         Tende a bondade de vos sentar: não haveis de chegar a impacientar-vos. Muito bem, a vosa nuca inteiramente descançada n’este circulo de metal;esa perna sobre a outra, o braço estribado na hanca:d’este modo podereis conservar-vos immovel por um terço de minutos, mas immovel com a mais perfeita imobilidade. Sem isso correrieis grande perigo de vos aparecerdes com quatro ou seis olhos, duas ou tres bocas, um rosto e meio, ou um nariz mais comprido que todo o corpo, é o que torna extremamente difficeis os retratos das_____([i])e dos passaros; e impossiveis os das dançarinas e dos doidos.
-         Mas creio, senhor, que o céu não estará hoje nuito disposto a favorecer-vos; aquellas nuvens, cobrindo e descobrindo o sol, devem perturbar singularmente a vosa cleste collaboradora.
-         Não temaes nada; a luz é perfeitamente obsequiosa, as variações da athmosfera só fazem que ela gaste alguns segundos mais ou menos, para nos servir, mas o effeito é seguro; é como o olhar da mulher que se ama, venha de perto ou de longe: exprima a tristeza ou a alegria, nem por isso deixa de vir estampar-se no coração. Emquanto ella vos observar para retratar-vos; observal-a-hei eu a ella para adivinhar quando tem concluido a sua tarefa: agora silencio! Escolhei o objecto em que haveis de ter fitos os olhos, e deixae-a trabalhar.
-          Dizendo isto puchou do relogio, mostrou a hora, minuto e segundo em que se estava, e chegando a um cofrezinho, collocado, quatro ou cinco pés dianteda cadeira, levantou uma corediça que o fechava pela frente, e poz-se a considerar alternativamente o movimento das nuvens e do ponteiro, apenas este marcara o seu decimo quinto passo, fechando  a subitas o cofre exclamou:
-          Já vos tenho em meu poder.
E desappereceu com a enigmatica bocéta. Quinze minutos depois de operações mysteriosas, em quarto escuro, fechado e sem testimunhas, Mr. Thiesson voltou trazendo na mão o mais cabal e ireprensivel de todos os retratos: um verdadeiro espelho com memória. O inconquistavel ao lapis e pinceis soltou um grito de espanto: via-se entre as suas proprias mãos, inteiro, desde a cabeça até aos pés: contou uma moeda de oiro pelo seu resgate, e correu  para se ir entregar duas vezes simultaneamente á dama dos seus pensamentos que de tão boa mente esqueceu os seis retratos por este, como dentro em pouco, segundo se espera, poderá esquecer este pelo original
-         Um zeloso – lhe dise o seu companheiro, despedindo-se – um zeloso de lei, nunca entregaria um similhante retrato á mulher que adorase! É demasiadamente vivo, demasiadamente homem. Substitue-vos, e não é vós mesmo: é Jupiter, sob a forma de Amphytrião, diante do Alemens: a realidade aqui não é menos maravilhosa que a fabula: o proprio Arago, o grande confidente dos segredos da creação, ficou atonito diante de Mr. Thiesson sem poder conceber a sua obra; e a academia das sciencias de Paris, depois de o coroar dos mais altos elogios, não podendo resolvel-o a revellar o seu segredo, pediu-lhe em nome da sciencia e obteve que elle lh’o deixasse em carta lacrada para se abrir depois da sua morte: é uma herança preciosa para as artes, mas em cuja posse ellas folgariam de não ____([ii]) pelo decurso de um seculo.











































([i]) Palavra ilegível no exemplar da revista Universal Lisbonense a que tive acesso (Nota minha).
([ii]) Palavra ilegível no exemplar da revista Universal Lisbonense a que tive acesso (Nota minha).

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