segunda-feira, 16 de março de 2009

1890 - "Pasquinadas", Fialho d'Almeida

PASQUINADAS
Fialho d’Almeida
Livraria Civilisação
Casa editora de
Costa Santos, Sobrinho & Diniz
Porto
Pags. 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28
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As photographias

8 de Janeiro

Uma das coisas mais curiosas da exposição industrial foi a secção dos photographos retratistas, situada nos gabinetes que ladeiam a grande sala de pintura.
Alli, em molduras e pequenas vitrines, abebera um sem-numero de physionomias conhecidas, homens e senhoras, que além d’outras prendas apreciaveis e publicas, teem a de servir de reclame a todos os photographos em voga, consentindo, modestia á parte, que elles exponham em prova negativa e positiva as suas mil caretas e attitudes, qual d’ellas a mais catita e alambicada.
Tem-se commetido a injustiça d’opinar que a photographia seja uma arte impessoal, que fixa estupidamente o que lhe põem deante, e não retem na sua placa senão aspectos incaracteristios e frios, de cujo conjuncto não brota uma intenção, um lampejo de vida, ou qualquer estado d’estomago, mentalidade ou consciencia.
Orçando porém n’um milhar o numero de retratos que vi na exposição, de nenhum d’elles deixava de s’inferir o seguinte: a machina photographica é o maior caricaturista do mundo, e o mais arteiramente ironico de quantos observadores tem tido a sociedade. Através a sua impassibilidade automatica, de feito, é incalculavel o que ella sublinha de grotescos, preocupações, pequenos tics; e que prudhommesco mundo ella fez rebentar, com uma intenção cheia de humor, de dentro dos bonequinhos que lhe vão pedir um instante d’attenção.
O compadre leitor há-de já ter ido retratar-se. Pudera não! Com a familia. Ou entre amigos... ou porventura sósinho, n’uma hora superior em que se haja sentido grande espirito; e estou d’aqui a vêr-lhe o ar napoleonico, a mão perdida no peito da sobrecasaca, o vago rir de mascara e de esphinge...
Lembre-se pois da preocupação de grandioso que o alanceou n’esse momento, quando o artista, depois de lhe entalar o cachaço n’um semi-circulo de ferro, suito grita: « Sentido! »
Ah, é fatal! Ninguem, cuido eu, jámais se immobilisou deante da objectiva d’um photographo, que a si proprio não tivesse feito esta pergunta:
- Que irá pensar de nós a Posteridade?!
Da preoccupação d’entrar na historia, lá porque um sal de prata ennegrece, deriva essa série de monos pretos, chimpanzés, rainhas de Nantes, que enchem as vitrines das esquinas e das lojas, e cujos spasmos, motetes, risos, elucidam singularmente os philosophos quanto ao supino tolo que occulto vive em cada um de nós, n’estes adormecido, álerta n’aquell’outros, e vivo sempre, o demonico, como um gorgulho n’um bugalho.

Ah, Nossa Senhora! O que todas essas photographias nos dizem para a historia da tolice humana!... Logo a começar pelos meninos que as mamãs fazem retratar d’enfants Jésus, nusinhos, carantonhando, a bocca horrivel sem dentes, os joanetes tufudos, o ventre enorme, as unhas esmagadas; toda uma enflure de monstrosinhos, nos quaes a mimosa carne da infância nem sempre consegue disferçar defeituosas anatomias de familia.
Em seguida os meninos vão crescendo, e lá apparecem depois com as mesmas cabecitas de forçados e hydrocephalos, o mesmo ar bestiaga, fœtal, sobre cuja mascara velhota a innocencia fez correr, com mimos de Kate Greenaway, uma ou outra pincelada de graça exangue e de suavidade angelical.
D’ahi para cima, á proporção que a edade avança, e o sêr discriminado começa a adquirir autonomia, ás vaidades dos papás remirando a propria gentileza nas hesitantes perfeições do fructo secco a que dream origem, vem acrescentar-se as d’esse mesmo fructo, que sentindo-se viver, começa a estar contente de si proprio, o mequetrefe! Quinze annos, dezasseis annos... é a edade dos fatos novos, dos chapeus tombados sobre a orelha, dos romances Corazzi escondidos entre as folhas dos compendios, dos gargarejos á lua, das trancinhas de cabello nos medalhões dos relogios, das intimidades com marcadores de bilhar e caixeiros das casas de penhores – a edade em que cada qual começa a trabalhar por sua conta, e a estragar dinheiro por cona alhia – e em que e ira muitas vezes o retrato, pela necessidade de que o photographo nos venha dizer se progredimos, e se a nossa belleza, a nossa musculatura e a nossa força, adquiriam o garbo, a quadratura e a expressão, que tantas negaças da outra vez nos tinham feito.
Todos os cambiantes d’estas vanglorias e d’estas petulancias, repercutidas no fascias em garatujas physionomicas, são pela photographia fixados, com um espirito, uma desenvoltura, um entrain, que nem sempre abundarão nas boutades de Henri Monnier, Gavarni, ou Caran-d’Ache: e a exposição está cheia d’esta confraria particular de bonifrates, elles e ellas, qual mais picante em caricatura!
Elles ainda lá procuram temperar o ar vainqueur, com uma tal ou qual tonalidade grave de homens pensadores; os que teem barba fazem-na valer; os de bocca d’oiro acertoam os beiços, como a fazel-os rimar, muito espremidos – e certos, de corpo todo, arqueiam os braços, cambram-se, fascinabdo quem olha, com uma expressão de basofia e de triumpho. Há-os de sobrecasaca e collares á diplomata, luvas calçadas, reteso o punho, o chapéo na cabeça, a bengala picando o pavimento, como se tivessem acabado de descer a escadaria que se vê pintada no fundo. Há-os n’uma cadeira de cortiça, perna cruzada, insolentes, de braza na pupilla, o ar procreador, e chicotinho. Os que descançam a dextra no hombro d’um amigo: os que vem de caçadores, espingarda, cão de faiança aos pés, bolsa de caça a tiracollo: e de gymnastas, moços de forcado, velocipedistas e jockeys... São estes os plasticos, que apenas guardam da vida uma adoração da força physica, da belleza muscular, da graça tauromachica e bête, segredo dos seus sucessos no mundo da galantaria e do adulterio: e quer elles venham dos gymnasios ou dos amanuensados, das esperas de toiros ou dos regimentos, a sua noção do sublime é quase identica, e a objectiva photographica os caricatura, mostrando em centenas d’exemplares, através aquella aspiração de vida mascula, o mesmo pimpão vaidoso e satisfeito de si, qui montre ses avantages comme il peut.
A par dos plasticos, os psychicos – isto é, todos quantos nos querem impingir pela photographia uma intenção, a synthese das suas ideias, qualquer estado d’espirito ou de caracter... O toilette n’estes pouco importa: são os austeros, vestidos quasi sempre de negro, a corrente do relogio recolhida, versos ou artigosinhos de polpa na bagagem, distinção nos exames, e uma ou outra tintura de Spencer na dicção. Futuros lentes, futuros paspalhões, ministros futuros... Esperançosos, com um ar d’experiencia e de seccura, o respeito de si, risos fanados – e um tio collocado, a empurral-os pelo sacro, escada acima, té ás adiposidades d’um casamento ou d’um emprego.
Com a mulher, claro está se quintessencía esta comedia, em que ellas dão, pobres senhoras, o exagero do exagero. Qual de nós não tem uma irmã, uma parenta qualquer, uma cunhada, entre os vinte e oito e os cincoenta annos, cheia d’artificios d’actriz, romantico-hysterica, que vae para os ateliers dos photographos estereotypar os seus ataques de solteirismo agudo?
Há as que se retratam ao piano, d’olhos no céo, como umas Santas Cecilias pateadas. As que tiram o retrato afagando um gatinho, recolhendo d’um baile, desfolhando malmequeres defronte d’um espelho, ou a folhear livros de versos, pendidas como Ophelias sobre o rio da vida, cuja corrente lhes não espelha senão maridos e noivos... das outras. E em costume de varinas, mascaradas de noivas, ou entre rochedos, n’um panorama de mar, dizendo a um cão que as fita: « Que pena eu tenho, Joly, de que a tua poetica alma não viva, por exemplo, no corpo do Costa! »
Entanto a estas melancholicas, perdôa-se. Primeiro que tudo ellas são picantes, ou foram bellas, e mesmo ridiculas teem a poesia dos que soffreram e choraram. Porventura a virgindade lhes pesa, como uma ceira de figos que embolorece, exasperando o dono da loja que a não vendeu quando devia.
Oh, mas os homens!
Há no Rocchini a photographia d’um d’esses, surprehendente.
Representa-o de pé, por detraz d’uma banca torcida, entre duas grandes espheras armillares. Tem a colleira da Sociedade de Geographia ao pescoço, o olhar de Napoleão em Santa Helena: e o seu dedo estendido sobre um grande mappa que vem ao chão, pela mesa abaixo, o dedo aponta um continente, onde está escripta esta palavra – Africa.
Não sabe a gente bem se elle procura na mappa o sitio onde foi macaco, se a possessão para onde há-de ir governador, ou degredado.
- Lá p’r’a Calçada da Estrella, um pouco acima do palacio das Côrtes, há uma pequena montra de photographo, cujo centro é occupado pelo retrato d’um homem de cicoenta annos, bella cabeça, olhar de peixe, a olheira em papo, scismadora, o qual n’uma das mãos guarda uma penna, e um grande caderno d’almasso na outra, que elle mostra a quem passa, e onde está escripto: Abrolhos da Minha Vida.
É evidentemente um escriptor varrido da publicidade, aquelle pobre: um noitibó nostalgico e opprimido, aquelle enfermo, em cujos abrolhos recusaram picar-se os editores, e que o retratista teria feito bem em lhe metter no assento da cadeira, por conduzil-o á modestia soez dos outros pobres diabos.
N’este genero os especimens abundam, e eu não citarei senão casos extremos n’esta singular monomania exhibicionista, mais de trivial em paiz de capões e parvenus.
Tenho nos meus papeis uma photographia comprada na Feira da Ladra há muitos annos, pallida comida do sol, muito expressiva. Há um castello no fundo, um feixe de carabinas a meio plano, ensarilhadas. Hein? Que scenario mavortico! Os creneis da muralha, a ponte levadiça...
Junto a um pilar está de pé o retratado. Pobre rapaz! Veste um uniforme d’official, mas o seu ar é o d’uma engommadeira velha a quem por engano tivessem feito assentar praça, sem commiseração pelo apostema intestino, escabujador d’irreverencias, que mesmo em paz pôdre lhe pozesse á volta do armamento, um forte e guerreiro olor de polvora secca. O braço esquerdo afasta-se do tronco, a mão agarra um livro, e na folha branca virada para o publico, há um letreiro gothico, dizendo:
- X., alferes d’infanteria..., filho de N., capitão de caçadores 5, pae de O. P., alumno do Real Collegio Militar...
Mas o melhor é que por descuido do photographo, ao canto da scena, e como a jungir-se ás carabinas, não sei como apparece um guarda-chuva, um guarda-chuva paisana – talvez que a única arma brandida com fereza por aqulla geração minaz de trinca-fortes.
Todos teem ouvido fallar no famoso daguerro em que um antigo loclista do Illustrado gesticula por traz d’um magricella sentado a uma carteira, a fingir que garatuja um papelasio. E por baixo o distico celebre:
- O escriptor E. D. dictando ao seu secretario D. V....

São estes os retratos dos psychicos, os retratos de gente superior, os retratos d’expressão, suggestores do só lhe falta fallar! Que é costume dizer dos cães intelligentes. Porque sempre tem sido mania entre nós, a cabeça d’expressão.
- Gósto do Gil, nas caixas de phosphoros. É uma cabeça d’expressão!
Há lisboetas a quem o cabelleireiro, no principio de cada estação talha uma cabeça differente, d’expressão todas, e por lista, como nos restaurantes o serviço das cabeças – de cevado.
Mesmo, um editor do Porto envia o seu jornal ilustrado aos cabelleireiros, onde barbas e cabelleiras adequadas á indole, toilette, e opiniões politicas dos que, ricos de meritos e d’apologias sociaes, comtudo não tenham de seu, uma cabeça apresentavel.
As cabeças para este anno, por exemplo, são em verdade admiraveis.
1ª. – Cabeça d’inverno (soirées e solemnidades officiaes). O cabello curto, descobrindo a fronte em prolongamentos de genio, rapados á navalha nos angulos do coronal; a barba seja em ponta, e frisada em croc a bigodeira. Traz-se esta cabeça com sobre-casaca ou frack de soirée, gravata nuance côr de pombo ou salmonete, ferrada de saphiras e esmeraldas, e collete d’estofo aberto em coração.
2ª. – Cabeça de primavera (viagens, corridas, bofetadas e proclames de casamento. O cabello frisado nas pontas, aparta á esquerda n’uma marrafa nitida e côr de rosa; queixo rapado, e meio loup de barba sobre o rosto, formado por umas suiças triangulares que venham tapar o bigode aos cantos da bocca.
Põe-se com fatos claros e chaéos á hespanhola; d’appetite para loiros, que sejam ao mesmo tempo tati-bitates, e assim passom, misturando yes ás asneiras que disserem, infundir no publico a illusão da sua proveniencia estrangeirada.
3ª. – Cabeça para praias e estações d’aguas. Marrafa ao meio, separando bandós que tenham o ar de naturaes: cabello varrido sobre as orelhas, á viva mi novio! Té á angulatura externa dos olhos. Bigodinho em guias finas, pequenas suiças... à la vierge. O olhar deve ser ardente, sublinhado a rolha queimada para os casos especiaes de seducção, e os redactores avisam quem se fizer talhar esta cabeça, engrosse a voz, e não venha a publico senão fazendo a côrte, pelo menos, a duas mulheres.
Para sanguineos á preferivel esfalripar sobre a testa um tufo de cabello, em caracoes annulares, façon Richepin, cortando no queixo uma pêra hollandeza, bipartida na ponta em cauda d’andorinha: ou no caso de barba ser tufuda, deixando apenas pêra – de sete cotovellos.
Qualquer d’estas cabeças vae bem, Miguel, com flanellas leves, camisolas de regata, blusas d’Oxford ou linho de Manchester, bordadas á mão com attributos de pesca e canotagem.
Seduz facilmente herdeiras de provincia, e predispõe á condescendencia as mamãs que tenham jurado guerra ao matacão de seus esposos.
Além da elegancia opipara e inteiramente gracil d’estes figurinos, teem elles a incontestavel vantagem de reduzir todas as cabeças a quatro ou cinco typos fundamentaes – de cuja trama mestre photographo dissecará sem trabalho, o mesmo parvo.

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